25/02/2014

Ode à vida (porque os mortos não se velam e choram, celebram-se em vida)

O Mário Coluna morreu há umas horas.
Como sempre, quando alguém "grande" nos deixa, começa a comiseração, o elogio ao morto, as homenagens, a tristeza, o relembrar que estamos aqui à condição. As saudades. Daquelas que não há como matar.
O meu instinto, humana que sou e sujeita aos mesmos predicados católicos na criação a que todos neste país são sujeitos, foi esse mesmo. Não há como evitar, a nossa malha social teceu-se sobre a idiotice da culpa, da humildadezinha, sobre a enorme estupidez de pensar que estamos aqui para sermos sofredores e engolirmos o sapal todo que se nos coloque no caminho, que Deus ajuda, acompanha e recompensa quando formos "desta para melhor". Aliás, o ditado diz tudo:morremos e vamos para "uma" (vida) melhor que esta.
O raio. Raios parta se vou. Se for melhor que esta, será o supra-sumo da batata doce, porque esta vida é a que eu tenho, e macacos me trinquem se não a viverei o melhor que saiba, aprenda e consiga. Isto é tudo o que tenho certo. Depois, logo se vê.
Não tenho certo que exista mais alguma coisa para lá desta vida. O céu e o inferno são parvoeira cristãzinha. Se existissem, haveria certamente um problema de sobre-lotação no inferno. Seria mesmo um enorme aborrecimento ir congelar as perninhas para o jardim celestial, quando toda a gente que por aqui conheço e sobretudo gosto são uns pecadores do demónio. E não me interpretem mal: eu não nasci católica, a minha mãe teve o respeito suficiente pela minha liberdade de escolha para não me submeter a uma escolha que teria sido apenas sua. Mas sou católica. Melhor, cristã, que ao clube de elite dos católicos só se acede após uma mecha de cabelo molhada, e ainda não me batizei. Porque é que sou cristã? Porque finalmente aprendi o suficiente sobre a vida para assumir que existe "alguém" criador, que não nos predestina coisíssima nenhuma, antes nos dota de livre-arbítrio e seguramente nos achará a pior da espécies que aqui colocou. Mas tem esperança. Porque, como disse à Inês Leitão, quando lhe perguntei se seria minha madrinha, numa conversa privada entre mim e "Ele", disse-lhe finalmente "ok, tudo bem, já percebi que estás aí, e o que se passa entre os terráqueos é com eles, tu ajudas se aprendermos, se fizermos, se formos". E porque a fé é uma coisa que se desenvolveu em mim à medida que a vida testa os meus limites. Não porque precise de encontrar razões para lá da razão. Eu não andei anos a lidar com uma depressão que me inoperacionalizava porque era a pior das pessoas. Nem foi por ser a peste negra que nasceram uns tumores cancerígenos simpáticos nos meus ovários. Não foi castigo divino, mas se Ele ali colocou o dedo foi uma dádiva de aprendizagem. Ajudou muitíssimo no processo chamado vida. E como me disse um médico especialista nessa coisa da tortuosa mente humana, ter fé também ajuda. Se for em nós, então. Ui, se não ajuda.
Como não tenho particular crença numa existência para lá desta, é nesta que quero ser, viver, sentir, experimentar, cheirar, tocar e ver, convocar todos os sentidos e sentimentos, trazer todos os meus para perto, fazer bem e por bem. O que haja a aprender, que aprenda aqui e que me valha em tempo útil. O que seja para viver, seja vida por estes anos. E quando tiver de partir, espero apenas que os que ficam não sofram demasiado.
Claro que isto é muitíssimo fácil de escrever, e muito menos ligeiro na feitura. Há um par de anos, numa visita a um Palácio Imperial em Marraquexe, daquelas pirosas com guia nativo e tudo (uma pessoa tem três dias para conhecer tudo o que puder, desculpem lá), dizia ele, muçulmano convicto: "nós não velamos os mortos. Não esperamos que a família venha de outras cidades e países para enterrar o morto. Chorar por ele? Despedirmos-nos? Se não o gostámos e usufruímos da sua vida, o problema é nosso. Ele já está morto. Devolve-se o corpo à terra". Não estou a piscar os olhos à fé da Alá (e se estivesse, estaria). Mas há toda uma despreocupação perante a ideia de culpa que invejo. Que subscrevo. E quanto aos mortos, que não se velam e choram, mas antes se celebram em vida, não há forma melhor para descrever o que penso. Já o sentir, esse, é campo da irracionalidade. Custa mais.
É MENTIRA, das mais desculpativas e cruéis que conheço, que os bons sigam à frente e primeiro, e que só Deus tenha os que ama. Se Deus é tudo, não tem os maus, os bons, os vivos, os mortos, enfim, tudo? Se chega o momento da falência desta máquina chamada corpo, não vamos todos, bons ou maus, embora?

Não sabemos lidar com a morte. MAS SABEMOS LIDAR COM A VIDA?
É com a vida que não estamos em paz. Se a aproveitarmos, a nossa a dos nossos a dos outros, a morte passa a ser um "apenas". Apenas morte. Saudade boa. Sem os arrependimentos e as coisas mal resolvidas que nos motivam as lágrimas, a culpa e a tristeza.
Se soubermos LIDAR COM A VIDA, levamos o papo cheio para o que quer que seja que possa estar lá, do outro lado. Sejam 72 virgens, um jardim esverdejante ou um infernal caldo fervilhante. Ou nada.

A mim, interessa-me já o minuto que aí vem. Esperando ter aproveitado o que termina.

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